Fraude processual e o modus operandi da polícia após abordagens irregulares

Por 7Segundos |

A morte do adolescente Gabriel Lincoln Pereira da Silva, de 16 anos, ocorrida no último dia 3 de maio, em Palmeira dos Índios, reacendeu o debate sobre o modus operandi de guarnições policiais envolvidas em ocorrências que terminam com mortes e fortes indícios de fraude processual.

Segundo a versão da Polícia Militar sobre o caso, com base no relato dos policiais do 10º BPM envolvidos na ação, Gabriel teria reagido à abordagem, efetuado disparos contra os militares e estaria de posse de um revólver calibre 38. Familiares, no entanto, contestam a narrativa. Eles afirmam que o jovem jamais portou arma e que foi impedido de receber atendimento com a presença de parentes.

Ainda que as investigações estejam em curso e seja precoce qualquer conclusão definitiva, o caso remete a um padrão que já se repetiu em outras mortes provocadas por policiais no Agreste alagoano: a alegação de confronto, a apresentação de uma suposta arma de fogo, o socorro feito pelos próprios agentes envolvidos e a ausência de registros audiovisuais independentes da cena do crime. Há suspeitas de adulteração de provas e tentativa de justificar os homicídios como atos de resistência à prisão.

FRAUDE PROCESSUAL: UM ATALHO PARA A IMPUNIDADE

A fraude processual, prevista no Art. 347 do Código Penal Brasileiro, ocorre quando se altera propositalmente o local de um crime ou se introduz elemento falso com o objetivo de influenciar o andamento das investigações ou o resultado do processo. No caso de agentes da segurança pública, isso pode incluir desde o deslocamento de corpos até a implantação de armas ou drogas na cena do crime.

Segundo o sociólogo e especialista em segurança pública José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de segurança, esse tipo de conduta é mais comum do que se imagina. "Infelizmente, há casos em que policiais agem com o objetivo de forjar um confronto, garantindo para si a impunidade sob a égide da suposta resistência armada. O que ocorre é uma execução extrajudicial camuflada pela narrativa oficial."

A tendência é corroborada por relatórios da Human Rights Watch e de entidades brasileiras como o Instituto Sou da Paz, que apontam que em algumas regiões do país a prática de simular confrontos com a população jovem, principalmente negra e periférica, é recorrente e frequentemente acobertada por lacunas investigativas.

Arma implantada em um caso semelhante, onde o empresário Marcelo Leite foi assassinado em 2022, em frente à sede do 3º BPM

MODUS OPERANDI

  • MARCELO LEITE (ARAPIRACA, 2022)

    Em 14 de novembro de 2022, o empresário Marcelo Leite dirigia um Hyundai Creta quando teria passado em alta velocidade por um quebra-molas e não obedecido à ordem de parada de uma guarnição militar. A perseguição resultou em dezenas de tiros, um deles atravessou o porta-malas e atingiu Marcelo nas costas. Ele morreu semanas depois em São Paulo, para onde foi transferido a pedido da família

    A versão da PM alegava que o empresário reagiu à abordagem, mas as investigações apontaram incongruências e levaram à denúncia de quatro policiais pelos crimes de homicídio qualificado, denunciação caluniosa e fraude processual. A família sempre negou que Marcelo estivesse armado e afirmou que ele foi executado. Saiba mais sobre o caso, clicando aqui.

  • DANILO FERNANDO (ARAPIRACA, 2021)

    No dia 25 de novembro de 2021, Danilo Fernando, de 17 anos, pilotava uma moto Pop 100 nas imediações da casa da tia, quando foi abordado por policiais. Segundo a versão oficial, houve troca de tiros e Danilo foi socorrido ao Hospital do Agreste, onde morreu.

    Testemunhas, no entanto, afirmam que o jovem não estava armado. O Ministério Público Estadual concluiu, com base em depoimentos e imagens, que a arma foi "plantada" na cena do crime. Os quatro policiais envolvidos foram denunciados por lesão corporal seguida de morte e fraude processual. O processo segue sob sigilo. Saiba mais sobre o caso, clicando aqui!

FAMÍLIA DE GABRIEL BUSCA RESPOSTAS

O pai do jovem Gabriel Lincoln, Cícero Bezerra, foi recebido pelo secretário de Segurança Pública de Alagoas, Flávio Saraiva, e pelo comandante da PM, coronel Paulo Amorim. No encontro, foi anunciada a criação de uma comissão especial de delegados para investigar o caso, além da abertura de um Inquérito Policial Militar (IPM). Os policiais envolvidos já foram afastados das ruas.

"Confio na Polícia Militar. Meu único pedido é que a investigação aconteça de forma isenta e que a verdade apareça. É isso que a gente precisa como família", declarou Cícero.

A Delegacia Geral da Polícia Civil de Alagoas instituiu uma comissão para investigar a morte do adolescente. O colegiado será composto pelas Diretorias de Polícia Judiciária 1 e 3, além da Delegacia de Homicídios da 5 Região, tendo como responsáveis, respectivamente, os delegados Sidney Tenório (diretor da DPJ1), Alexandre Leite, (diretor da DPJ3) e delegado João Paulo Tenório, (coordenador da DH da 5ª Região).

O CICLO DA IMPUNIDADE E A NECESSIDADE DE MUDANÇA

Casos como o de Gabriel, Marcelo e Danilo revelam um padrão de atuação policial que desafia os princípios do Estado Democrático de Direito. A implantação de provas, o controle sobre a cena do crime e o silenciamento de testemunhas representam um risco à justiça e uma afronta à cidadania.

Uma das medidas mais cobradas por especialistas é a implantação de câmeras corporais (bodycams) nas fardas dos policiais, como forma de garantir a transparência nas abordagens e o registro fiel das ações. Em Alagoas, a Polícia Militar começará a utilizar os equipamentos a partir de novembro deste ano, com investimento de R$ 9 milhões provenientes do Fundo Nacional de Segurança Pública.

Inicialmente, as cerca de 600 câmeras serão distribuídas apenas entre guarnições de Maceió e Arapiraca. As unidades especializadas, como a Ronda Ostensiva Tática Motorizada (ROTAM) e o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), ficarão de fora da primeira etapa. A previsão é que o sistema esteja completamente implantado até novembro de 2025 — embora a Secretaria de Segurança Pública reconheça que o cronograma pode ser impactado por exigências técnicas e processos licitatórios.

Enquanto o equipamento não estiver em uso de forma ampla, investigações de casos como o de Gabriel continuarão dependendo de versões contraditórias e da escassa produção de provas materiais — um vácuo que favorece a impunidade e perpetua violações de direitos.